SALVE, SALVE MEU AMIGO LEANDRO LEHART
A proposta de Leandro Lehart para a Virada Cultural tinha sabor um tanto hollywoodiano: entrar para o livro Guinness dos recordes por reunir a maior bateria de escola de samba do mundo, com (mais de) mil ritmistas tocando em uma só voz musical ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Pois o resultado foi mil vezes mais interessante que o propósito. O chão quase sempre surrado da praça da República tremeu quando ritmistas de todas as escolas de samba de São Paulo começaram a tocar, em uníssono, para Xangô.
E Xangô subiu, e o recorde foi batido. E, se o Brasil não é bairrista, hoje Rio de Janeiro e Bahia farão mesura e reverência para o samba de São Paulo, o maior do mundo, pelo menos nesta tarde em que Vinicius de Moraes repousa no túmulo do sono. O efeito foi de arrepiar, não só pelo trovão sonoro quando Leandro atacou o axé "de raiz" "Magalenha", com o qual o brasileiro-estrangeiro-forasteiro Sergio Mendes lançou Carlinhos Brown para o mundo, em 1992. Tão emocionante quanto o som que saía do bumbo foi a cena final de todos os instrumentos erguidos para o céu em celebração de vitória.
A interação mestre-mestres-músicos-plateia foi show à parte, ou melhor, foi o próprio show. Os ritmistas foram colocados no solo onde antes ficava o público (como, por exemplo, no histórico encontro soul-samba-funk "de raiz" da noite anterior entre Toni Tornado e Dom Salvador & Abolição). O público foi empurrado para as beiradas, e apínhou alegremente o chão da praça, sob o sol escaldante das 14 horas do domingo ensolarado. O espetáculo foi a soma harmônica de todas as partes, condensada em gestos como o de mestre Lehart reger a troca momentânea do som da bateria pelo uníssono das palmas nas mãos de quem não tinha instrumento.
O repertório centrou-se em sambas das escolas paulistas, rico e generoso em mensagens que se traduziam imediatamente no mosaico formado por ritmistas e espectadores, como "negros, índios e brancos, ó, que linda aquarela", do samba-enredo "Amado Jorge", da Vai-Vai. As teorias (e práticas) de mestiçagem de Leandro, desde os tempos do grupo Art Popular, estavam mais uma vez confirmadas ao vivo, num dos shows mais coloridamente negros de toda a Virada Cultural 2011.
Para lá da catarse afrobaiana de "Magalenha" e da dedicatória sentida às crianças de Realengo, o momento forte foi quando Leandro refez "Fricote", de seu Art Popular. O público se engajou instantaneamente nos versos tipo "sou seu namorado, vem, vem/ que calor danado, vem, vem". Dando a volta no samba "de raiz" das escolas, estávamos de volta ao pagode dos anos 1990, estilo marcadamente paulista, de que o público perde velozmente a vergonha de se orgulhar. Fora desse cercado, só fica hoje em dia aquela(e) madame que João Gilberto esculhambava em forma madamesca de bossa nova: "Madame diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba/ madame diz o que samba tem pecado, que o samba, coitado, devia acabar/ madame diz que o samba tem cachaça, mistura de raça mistura de cor/ madame diz que o samba democrata é música barata sem nenhum valor".
Hoje o termo "samba" poderia ser substituído por "pagode 'mauricinho'", com justiça e mérito. Madame, se estivesse aqui no chão da praça neste domingo, teria ficado sem discurso. "Que fique na história do carnaval paulista", vibrou Leandro - mas não só paulista, nem só do carnaval. Deixando para lá o Guinness Book, os sambistas do Rio e da Bahia hão de soltar a mão de madame e reverenciar o mistura-de-raça-mistura-de-cor Leandro Lehart por seu feito histórico nesta tarde paulistana samba-funk-blues-rock'n'roll de domingo.
Texto original do site.
Leandro Lehart reúne a maior bateria de escola de samba do mundo.
Recorde foi batido durante apresentação do cantor na Virada Cultural.
Foto: Jorge Rosenberg, especial para o iG
Bateristas reunidos na Praça da República, durante a Virada Cultural
E Xangô subiu, e o recorde foi batido. E, se o Brasil não é bairrista, hoje Rio de Janeiro e Bahia farão mesura e reverência para o samba de São Paulo, o maior do mundo, pelo menos nesta tarde em que Vinicius de Moraes repousa no túmulo do sono. O efeito foi de arrepiar, não só pelo trovão sonoro quando Leandro atacou o axé "de raiz" "Magalenha", com o qual o brasileiro-estrangeiro-forasteiro Sergio Mendes lançou Carlinhos Brown para o mundo, em 1992. Tão emocionante quanto o som que saía do bumbo foi a cena final de todos os instrumentos erguidos para o céu em celebração de vitória.
A interação mestre-mestres-músicos-plateia foi show à parte, ou melhor, foi o próprio show. Os ritmistas foram colocados no solo onde antes ficava o público (como, por exemplo, no histórico encontro soul-samba-funk "de raiz" da noite anterior entre Toni Tornado e Dom Salvador & Abolição). O público foi empurrado para as beiradas, e apínhou alegremente o chão da praça, sob o sol escaldante das 14 horas do domingo ensolarado. O espetáculo foi a soma harmônica de todas as partes, condensada em gestos como o de mestre Lehart reger a troca momentânea do som da bateria pelo uníssono das palmas nas mãos de quem não tinha instrumento.
O repertório centrou-se em sambas das escolas paulistas, rico e generoso em mensagens que se traduziam imediatamente no mosaico formado por ritmistas e espectadores, como "negros, índios e brancos, ó, que linda aquarela", do samba-enredo "Amado Jorge", da Vai-Vai. As teorias (e práticas) de mestiçagem de Leandro, desde os tempos do grupo Art Popular, estavam mais uma vez confirmadas ao vivo, num dos shows mais coloridamente negros de toda a Virada Cultural 2011.
Para lá da catarse afrobaiana de "Magalenha" e da dedicatória sentida às crianças de Realengo, o momento forte foi quando Leandro refez "Fricote", de seu Art Popular. O público se engajou instantaneamente nos versos tipo "sou seu namorado, vem, vem/ que calor danado, vem, vem". Dando a volta no samba "de raiz" das escolas, estávamos de volta ao pagode dos anos 1990, estilo marcadamente paulista, de que o público perde velozmente a vergonha de se orgulhar. Fora desse cercado, só fica hoje em dia aquela(e) madame que João Gilberto esculhambava em forma madamesca de bossa nova: "Madame diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba/ madame diz o que samba tem pecado, que o samba, coitado, devia acabar/ madame diz que o samba tem cachaça, mistura de raça mistura de cor/ madame diz que o samba democrata é música barata sem nenhum valor".
Hoje o termo "samba" poderia ser substituído por "pagode 'mauricinho'", com justiça e mérito. Madame, se estivesse aqui no chão da praça neste domingo, teria ficado sem discurso. "Que fique na história do carnaval paulista", vibrou Leandro - mas não só paulista, nem só do carnaval. Deixando para lá o Guinness Book, os sambistas do Rio e da Bahia hão de soltar a mão de madame e reverenciar o mistura-de-raça-mistura-de-cor Leandro Lehart por seu feito histórico nesta tarde paulistana samba-funk-blues-rock'n'roll de domingo.
Texto original do site.